Esta época, que mostra a si própria o seu tempo como sendo essencialmente o regresso precipitado de múltiplas festividades, é igualmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Quando as suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom excitam a um excedente de dispêndio econômico, elas não trazem senão a decepção sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna deve, no espetáculo, gabar-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduziu. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.Guy Debord - Sociedade do EspetáculoUma das dúvidas mais existenciais do mundo pede uma resposta concreta: sim ou não. Corpo e Cabeça, Razão e Emoção.Em uma de suas aventuras Ulisses na Odisséia conta que ao navegar pelos Mares e passar próximo às Sereias todos os marinheiros prevenidos pelo capitão da Nau taparam os ouvidos com cera para não ouvir o canto, como estratégia tática, basicamente.Ora, o sagaz Ulisses, astuto e desejoso de ouvir o belo canto das sereias, decidiu amarrar-se ao mastro para não ter a atitude de se deixar levar pela beleza estética e sonora da brincadeira. E ele amarrado ao mastro ouviu o canto das sereias, mas como estava amarrado, não se permitiu ser tomado pelo impulso de ir, lugar onde nenhum outro havia voltado.Impasse, Kafka escreve um conto sobre as sereias e Ulisses, e a discussão baseia-se no silêncio, o mesmo impulso que provoca o canto pode provocar o silêncio.Qual a força criativa necessária para o canto da Sereia que não a necessidade de perder-se no mais doce e estético que o corpo pode provocar, porém se o humano não deseja perder-se nada melhor do que saborear a derrota, Ulisses foi condenado ao silêncio por não querer sentir, dessa forma, via a beleza, os cabelos esvoaçando de maneira horripilante, mas nada de som.A proximidade com o sentir, e a possibilidade ou não de saber o que fazer, o obrigou inclusive a questionar sua existência, compreenda, não há nada pior do que não querer sentir, astuto ele se aprisionar com cordas, porém surdo ele de não entender propósitos.O silêncio reinou.Pela primeira vez na vida não acredito que minha proposta de análise isentará sentimentos e inclusive de maneira visceral, até por que não acho que seja possível isentar-se de maneira absoluta nem ao menos ideal.Ódio à peça foi o primeiro necessário sentimento, o que estava eu lá fazendo, muitas vezes a cabeça se movia com intenção de fugir às repetições de movimentos, que a princípio me pareciam extremamente cansativos.Pensei em quanto assistia: o que faço aqui? Que tipo de proposta sobre a discussão da mercadoria poderia acrescentar algo que 200 séculos, de marxistas e românticos em geral não haveriam trabalhado, e todo mais tipo de preconceito básico de um bom acadêmico da ciência social.Porém quando dormimos nossos monstros retornam. Quando acordei foi um chute no estômago, a questão me perturbava sobre a impossibilidade real que temos de sentir. A falta de fala repetia para mim o vazio daquilo (coisa objeto) que havia deixado de ser coisa e havia se transformado em sentimento coisificado. Ultrapassava até mesmo a mesa que dançava de Marx, para tornarmos-nos pessoas incapazes de definitivamente sentir e ser qualquer coisa significativa (explique: com significado).Não consigo explicar o choro emocional, eu estava vazia sozinha e com dinheiro para pagar contas e viagens planejadas, e com documentos desorganizados, roupas entulhadas, livros empilhados e vazia, completamente sozinha.Daí surge para mim o significado de reificação, como pessoas coisificadas incapazes de sentir o próprio corpo, ou reagir a necessidades, e que não haja simplesmente com impulsos mecânicos como abrir a porta, ou lavar o rosto, em nome de seguir o mesmo tipo de rotina incansável e irreal. Afinal para que, por que fazemos tudo isso, em nome do que?Para que nossas sacolas? Aonde vamos? Para que também organizá-las, todo o sentido de causa e conseqüência torna-se o nada, o mesmo que sinto no momento em que as teclas tocam em meu dedo.Porque não é senão como categoria universal do ser social total que a mercadoria pode ser compreendida na sua essência autêntica. Não é senão neste contexto que a reificação surgida da relação mercantil adquire uma significação decisiva, tanto pela evolução objetiva da sociedade como pela atitude dos homens em relação a ela, para a submissão da sua consciência às formas nas quais esta reificação se exprime... Esta submissão acresce-se ainda do fato de quanto mais a racionalização e a mecanização do processo de trabalho aumentam, mais a atividade do trabalhador perde o seu caráter de atividade, para se tornar uma atitude contemplativa. Lukács - História e consciência de classePorém além do lixo humano, há o texto, primeira crítica, esse era um texto teatral? Perguntava-me quantas páginas ele possui etc.Não consigo retornar a uma sequer palavra significativa no texto, mas, a repetição dele ou das marcas de lojas citadas, determina na repetição da própria idéia de prazer e produção dele a incansável improbabilidade de sua existência.Estou cansada agora, percebo que superar obstáculos de dominação de nossa natureza não é fácil, pobre Ulisses, na tentativa de enganar Sereias se engana também. Nossa natureza ainda é animal, mesmo que...Não estou disposta a sacrificar-me de minhas pulsões como Ulisses. O fez em nome da Civilização. Ainda acredito que o esclarecimento é tão mágico quanto à ficção. Ainda pertenço à classe de pessoas que compreende o mundo pela janela da mitologia, e esta possível de não ser menor que a ciência ou o saber, mas somente outra janela. Não é nem causa nem conseqüência também como alguns a pensam, quase como uma linha evolutiva, mas apenas outra forma.Cego são aqueles que não ouvem o chamado dos guardiões, nossa porta ainda aguarda por batermos em seu casco. Silêncio.
todos
Há 10 anos
Nenhum comentário:
Postar um comentário